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‘Abracadabra 2’: as bruxas estão soltas – e afinadas com nosso tempo

Com o cabelo preto penteado para cima, no formato de um chapéu pontudo e torto, Mary mexe seu nariz avantajado e fala cantarolando: “Sinto o cheiro de criança”. O dom peculiar lhe é útil: para aplacar os sinais do envelhecimento, ela e as duas irmãs, bruxas em constante busca pela beleza (sem muito sucesso), sugam a alma dos pequenos. Estrelas do filme infantojuvenil Abracadabra, de 1993, que ganhou recentemente a sequência Abracadabra 2, no Disney+, as irmãs Sanderson são sobreviventes da caça às bruxas na cidade americana de Salem no século XVII. Trezentos anos depois, despertaram numa realidade bem diferente. Em 1993, ninguém mais as perseguia com tochas de fogo na mão: as feiticeiras haviam se tornado figuras pop e celebradas no Halloween, uma festa inteira dedicada a elas. Depois de um cochilo de quase três décadas, elas voltaram das cinzas, em 2022, para um mundo ainda mais excêntrico: a fórmula da juventude das crianças é vendida em potes na farmácia com o nome de creme anti-­idade, o misticismo se tornou modinha entre adolescentes e as bruxas do passado viraram ícones feministas.

Vividas com deleite evidente pelas atrizes Bette Midler, Kathy Najimy e Sarah Jessica Parker, as irmãs Winnie, Mary e Sarah Sanderson refletem as mudanças no trato que as feiticeiras receberam historicamente no cinema e na TV. Malvadas e assustadoras, belas e gentis — ou perigosas e atrapalhadas, caso das estrelas de Abracadabra —, as bruxas da ficção acompanham os humores de seu tempo, especialmente no que diz respeito ao comportamento das mulheres.

As primeiras feiticeiras a ganhar fama mundial no cinema estavam restritas às tramas infantis, da vaidosa Madrasta Má de Branca de Neve e os Sete Anões, animação clássica da Disney de 1937, às opostas Glinda e Elphaba de O Mágico de Oz, em 1939 — a primeira era boa e de rosto angelical, e a outra, má, feia e verde. A mensagem era clara e maniqueísta: a beleza servia como munição da competição feminina e ainda atrelava a aparência aos padrões de bondade versus maldade. Com a popularização da TV — e um empurrão do filme Casei-Me com uma Feiticeira, de 1942 —, a personagem ganhou banho de loja e foi vertida em dona de casa nas sitcoms A Feiticeira e Jeannie é um Gênio, na década de 1960.

Tempos depois, a segunda onda do feminismo se formava — e as bruxas surfaram nela como atletas olímpicas. Elvira: a Rainha das Trevas (1988) exaltava a liberdade sexual de uma mulher soltinha, em oposição à paranoia religiosa. Em Da Magia à Sedução (1998), com Sandra Bullock e Nicole Kidman como irmãs bruxas, a chamada “sororidade” é ingrediente de qualquer feitiço. Mas o que nenhuma delas esperava é que, na virada dos anos 2000, um menino de óculos chegaria para estabelecer um novo retrato da bruxaria. A saga Harry Potter, da autora J.K. Rowling, representou com vigor as incertezas do novo milênio, passando pelo medo coletivo instaurado pós-11 de Setembro até a ascensão de discursos nacionalistas preconceituosos.

Tamanha popularidade fez diminuir a rejeição às bruxas, mas não limou totalmente a pecha que as persegue. Há movimentos religiosos contra Harry Potter — o livro já foi banido de diversas escolas americanas a pedido de pais. Nem as coloridas e caricatas irmãs Sanderson, em pleno século XXI, se livraram da fogueira. Uma mãe texana viralizou nas redes sociais no início do mês ao criticar Abracadabra 2: segundo ela, o filme “abre as portas do inferno” e mostra bruxas bebendo o sangue de crianças — cena inexistente na produção. O pedido de boicote falhou: Abracadabra 2 foi o lançamento de maior audiência do Disney+. Um feito e tanto dentro da plataforma que promove títulos com selos da Pixar e da Marvel. Não se trata de bruxaria: é só diversão de boa qualidade.

Publicado em VEJA de 26 de outubro de 2022, edição nº 2812

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